terça-feira, maio 02, 2006

Ítalo Calvino


«Se numa noite de Inverno um viajante»


«... cemitério das horas passadas jacentes exangues no seu panteão circular.
... eu não vejo cada minuto cair-me em cima de repente como a lâmina de uma guilhotina?
não vale a pena atormentar-me na ânsia de fazer andar para trás os relógios e os calendários na esperança de voltar ao momento anterior àquele em que aconteceu alguma coisa que não devia acontecer.
sou uma pessoa que de modo nenhum dá nas vistas, uma presença anónima num fundo ainda mais anónimo... um viajante que perdeu uma ligação.
... que me abrem o coração a esperança de alívio imediato...
só se tem uma sensação de isolamento durante o trajecto de um lugar para outro, isto é quando não se está em lugar nenhum
.
...intenção oculta, que ainda não estás em condições de captar.
a coisa que eu mais desejaria neste mundo é fazer andar para trás os relógios.
a paixão que te domina é a impaciência de apagares os efeitos perturbadores dessa arbitrariedade ou distracção, de restabeleceres o curso regular dos acontecimentos.
Passas uma noite agitada, o sono é um fluxo intermitente e entupido, ..., com sonhos que mais parecem a repetição de um sonho sempre igual. Lutas com sonhos tal como com a vida sem sentido nem forma, procurando um desígnio, um percurso que apesar de tudo tem de existir, ...
“és tu que saltas menos por cada ano que passa.”
... âncora, uma exortação para me fixar, para me agarrar, para fundear, pondo fim ao meu estado flutuante, ao meu boiar à superfície.
A procura da âncora em que me empenhei parece apontar-me o caminho de uma evasão, talvez de uma metamorfose, de uma ressurreição.
o passado é como uma bicha solitária cada vez mais comprida e que trago enrolada dentro de mim e que nunca perde os anéis por mais que eu me esforce por esvaziar as tripas em todas as retretes...
o passado não pode mudar tal como não se pode mudar de nome...
...quando oiço tocar um telefone .... – não basta dizer que a minha é uma reacção de rejeição, de fuga a este apelo agressivo e ameaçador, mas também de urgência, de insustentabilidade, de coerção que me leva a obedecer à ordem daquele som acorrendo a atender, mesmo na certeza de que só me dará sofrimento e mal-estar.
A leitura é Solidão
.
... os vossos respectivos Eus em vez de se anularem têm de ocupar sem resíduos todo o vácuo do espaço mental, de investir em si mesmo com os maiores lucros possíveis ou de se consumir até ao último centavo.
Mas o fim será mesmo o clímax?
a única verdade que posso escrever é a do instante que vivo.
... escrever é sempre esconder alguma coisa
para que seja depois descoberta...
renunciar às coisas é menos difícil do que se pensa : tudo está no começar.

Sem comentários: